Peguei na minha mala e levantei-me direito à saída. Pensava no que ia fazer quando chegasse a casa, enquanto percorria a rua. Foi então que a vi. Estava sentada num muro, com a cabeça descaída, os cabelos caídos e a cara lavada em lágrimas. Quis aproximar-me, mas tinha medo. Não queria ser mal interpretado para além de que ela podia querer estar sozinha. Por falar nisso, ela nunca costuma estar sozinha. Vejo-a sempre sorridente rodeada de pessoas que parecem divertir-se tanto como ela. Quantas vezes não quis ser uma dessas pessoas…
Ganhei coragem. Aproximei-me devagar. O meu coração batia cada vez mais forte a cada passo que dava, ao ponto de me perguntar se ela o conseguiria ouvir. Se o ouvia não o demonstrou.
Cheguei-me o mais perto que consegui da rapariga, ela nem sequer notou a minha presença. E agora? Digo alguma coisa? Pouso a mão no seu ombro? Começo a tossir?
- Estás bem? – Acabei por perguntar.
Finalmente ela apercebeu-se que alguém estava ali e levantou ligeiramente a cabeça para ver quem era. Por detrás dos seus cabelos consegui ver uns olhos já vermelhos de chorar, os lábios e as bochechas ligeiramente rosados e o brilho das gotas que escorriam pela face.
Ficámos assim durante algum tempo e quando dei conta ela abraçava-me enquanto apoiava a sua cabeça no meu ombro. Senti a camisola a humedecer depressa, não me importei. Retribuí o abraço ainda meio entorpecido com aquela situação.
- Posso ajudar-te em alguma coisa? – Perguntei-lhe passado algum tempo. Ela abanou a cabeça negativamente e eu não insisti.
- Queres que te leve a casa?
Afastou-se ligeiramente e olhou-me directamente com os seus olhos castanhos, agora descobertos. Não respondeu, também não foi preciso. Aquele olhar transmitiu tudo o que precisava de saber. Estendi-lhe a mão e ela agarrou-a com a sua, e como estava quente!
Guiei-a por entre as ruas, passeios e estradas. Não dissemos nada. O simples silêncio chegava-nos. Sabia onde ela morava. Passava pela casa todas as manhãs a caminho da universidade. Essa questão também não parecia importar-lhe, deixou-se seguir por mim, como se soubesse que eu sabia.
Quando passámos pelo jardim detive-me ao portão. Estava quase na hora de fechar, uma ideia pateta passou-me pela mente. Puxei a mão e ela seguiu-me. Quando era pequeno gostava de ir brincar para uma espécie de torre que existia no cimo de um pequeno monte. Já era antiga, feita de pedra e com pequenos degraus até ao topo. Ficava escondida devido a grandes arbustos por isso a visão de fora lá para cima era quase nula. Enquanto subíamos o sol punha-se por detrás dos prédios, deixando o céu com um tom alaranjado. No cimo havia uma casinha também feita de pedra, já toda riscada por tinta de caneta e graffiti. Sentei-me encostado à parede do lado de fora e ajudei-a a sentar-se a meu lado. Os seus olhos brilhavam como os últimos raios de sol no horizonte. Não fez uma única pergunta nem reclamação. Não a censurei, já não chorava.
Fez-se de noite depressa. O céu não estava nublado, a primeira vez esta semana. As estrelas brilhavam mais que nunca, enquanto a lua estava camuflada na escuridão do negro em redor. Gostava de dizer alguma coisa, algo que a fizesse sorrir. A sua expressão mostrava serenidade, ainda que o seu olhar parecesse perturbado.
- Queres contar estrelas?
Peguei-lhe na pequena mão e segurando-a com o dedo indicador levantado, comecei a contar.
Quando ia nas noventa e duas senti a sua cabeça encostar-se ao meu ombro. Tinha adormecido. Não me mexi com medo de a acordar. Pousei-lhe a mão no colo e assim ficámos por várias horas.
Um camião do lixo passou fazendo barulho ao despejar os contentores, acordando-a. Sabia que eram horas de ir para casa. Levantámo-nos e peguei-lhe na mão novamente, levando-a até um buraco que havia na rede que dividia o parque da rua, um buraco que tinha descoberto a semana passada. Nunca pensei que o chegaria realmente a utilizar.
Não estávamos muito longe da casa dela. Cinco minutos e chegámos à porta. Esperei cá fora até ela entrar. Lançou-me um último olhar mesmo antes da porta fechar.
Esse olhar ficou-me cravado na mente o resto da noite.
Acordei, ainda desorientado com o sonho. Devo ter-me esquecido de tomar a medicação. O meu coração batia aceleradamente. Suspirei. Aqueles sonhos não podem continuar. Há um mês que não durmo bem. São tão vividos que por vezes os confundo com a realidade… Mas nenhum tinha sido tanto como este.
Vesti-me, tomei o pequeno-almoço e apanhei o autocarro como faço todos os dias. Ao chegar ao recinto da universidade vi-a. Sentada, rodeada de pessoas. Sorria.
Passei sem me fazer notar, tal como faço sempre. Desejei mais uma vez poder estar ali, como todas aquelas criaturas, com quem ela troca sorrisos. A meio das escadas tive o impulso de me virar para trás e rever aquela imagem. O meu coração parou.
Por entre as cabeças, ela olhava-me. Fixamente. Então soube que aquela noite não tinha sido mais um sonho.
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